Talvez amanhã
(...) As mãos lívidas repousavam sobre a velha escrivaninha empoeirada de resquícios em Ode ao Sr. Tempo. Em sua vista, tudo ainda estava exatamente como outrora, não fossem as sensações que o tomavam sem clemência. O frio e o silêncio insistiam em tornar aquele lugar num completo desconhecido, escuro e vazio. Seus olhos observavam, quase indolentes, passagens misturadas ao odor indistinto do morfo e à tinta amena no folheto, agora amarelado, no qual havia escrito sua frase favorita: CARPE DIEM! (Aproveite o dia!), que estranhamente não mais lhe traduzia tanta significância. Tal como a janela, que costumava esperar o pôr-do-sol trazendo seu esplendor, olhou fixamente seus vidros pálidos e o pequeno jarro portando flores secas — as mesmas flores da partida — que pareciam a lápide dormente de sonhos opacos.
Seu corpo adormecia frente à imagem refletida no espelho. Percebeu que o frio que sentia não era causado pela temperatura do ambiente, mas sim pela da sua alma, e sentiu falta. Sentiu desejo de ser como antes, de amar; sentiu saudades das loucuras agridoces proporcionadas pela paixão. O que mais lhe doía era saber que todas as feridas foram cicatrizadas e nenhuma lembrança sequer lhe causava temor. Fotografias, cartas e momentos pareciam excluídos de sua mente e do coração. Sob o mesmo teto em que viveu seus melhores dias, tudo era frio e silencioso; isso era o que sentia.
Sussurrou, consternado, à aspereza da sua punição:
— Ninguém merece viver assim, vazio.
Sentiu desejo de sentir o calor do amor novamente; sentiu desejo de reconhecer o seu lar novamente; e, então, sentiu desejo de se reconhecer novamente.







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